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O tempo da Quaresma, com cinco semanas e quatro dias, e o tempo pascal que o sucede, com sete semanas, se inserem dentro do ano litúrgico, tendo como data de referência o domingo de Páscoa, o qual ocorre logo após a primeira lua cheia de primavera (a partir de 21 de março, no hemisfério norte). A Quaresma é um tempo de aprofundamento da conversão, com seu apelo a uma mudança de valores recebidos da sociedade discriminatória e elitista em que vivemos. A partir da revelação em Jesus, em sua vida e sua prática, encontramos novos valores a serem assumidos em vista da promoção da vida plena para todos. O ato de conversão decorre do compromisso assumido no batismo. O batismo de João e a pregação de Jesus se fundamentam nesta conversão: "Convertei-vos e crede na Boa-Nova". No Antigo Testamento encontramos a simbologia da permanência no deserto como um tempo de conversão. No êxodo do Egito, o povo indócil a Javé, no momento em que deveria entrar na Terra Prometida, acaba ficando quarenta anos no deserto, curtindo um tempo de reconciliação com a divindade. Os evangelistas sinóticos (Mt, Mc, Lc) vão associar ao batismo de Jesus um tempo de permanência no deserto, quarenta dias, como tempo de sua conversão. De fato, depois da prisão de João Batista, há uma mudança na vida de Jesus. Voltando para a Galileia, sua terra, abandona sua cidade de origem, Nazaré, e, acompanhado de discípulos em uma vida itinerante, passa a anunciar a chegada do Reino de Deus. A sucinta narrativa de Marcos sobre a tentação de Jesus resume o seu ministério prestes a se iniciar: o convívio em confronto com seus adversários e o conforto da fraternidade dos discípulos, iniciados no aprendizado do serviço. A aliança com Deus é apresentada na primeira leitura de uma maneira antropomórfica. O deus que, arrependendo-se de ter feito os homens sobre a terra, resolveu exterminá-los pelo dilúvio, agora promete que não voltará a exterminar seu povo pelas águas. Salvam-se apenas Noé, prefiguração de Abraão, e sua família, com quem é feita uma aliança, da qual, a partir de uma etiologia bíblica, o arco-íris passa a ser uma lembrança. A "primeira carta de Pedro", na segunda leitura, associa as águas destrutivas e saneadoras do dilúvio com a água do batismo que é fonte de salvação. É uma teologia que se distancia do batismo de João e de Jesus como conversão à prática concreta da justiça. A conversão a que somos chamados envolve mudanças de valores e práticas pessoais em interação com os relacionamentos comunitários e sociais. Cumpre rompermos com os valores impostos pela cultura consumista que atende aos interesses dos poderosos. Somos atraídos, caindo na rede das TVs, dos shoppings e similares, cedendo às tentações que se apresentam agradáveis aos sentidos, ao conforto, à segurança, à vaidade, estimulando o sucesso pessoal no usufruto do poder, levando à indiferença para com os humildes, explorados, carentes e sofredores. É tempo de, libertando-nos, nos voltarmos amorosamente para o nosso próximo, particularmente aquele excluído e empobrecido, na prática da justiça, na partilha e na comunhão de vida.
José Raimundo Oliva
Santos do Dia:Agrícola de Nevers (bispo), Alexandre de Alexandria (bispo), André de Florença (bispo), Dionísio de Ausburgo (bispo, mártir), Faustiniano de Bolonha (bispo), INestor de Perge (bispo, mártir), Pápias, Diodoro, Conon e Claudiano (mártires da Panfília, na Ásia Menor), Porfírio de Gaza (bispo), Quodvultdeus de Cartago (bispo), Vitor de Troyes (eremita).
Primeira leitura:Gênesis 9, 8-15
Aliança de Deus com Noé, salvo das águas do dilúvio.
Salmo responsorial: 24, 4-9
Verdade e amor, são os caminhos do Senhor.
Segunda leitura: 1 Pedro 3,22
O Batismo agora vos salva.
Evangelho: Marcos 1,12-15
Foi tentado por Satanás, e os anjos o serviam.
A primeira leitura, Genesis 9, fala da aliança de Deus com Noé. A aliança mais importante, será a realizada com Abraão... A Aliança com Noé pertence a um segundo plano da economia da salvação. Nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra, assegura Deus a Noé (Gn 9,11). E esta promessa vai acompanhada de um memorial: o arco-íris, sinal de um novo pacto entre Deus e a humanidade.
O medo do “diluvio” foi quebrado! Agora temos uma nova aliança a partir de uma alternativa de vida para todos os seres viventes. A arca que abrigou a família se transforma em uma grande casa acolhedora da vida, onde o cuidado com os animais se destaca, de maneira especial (Gn 9, 10-7). É a casa da vida que coloca o ser humano em comunhão entre a terra, a natureza, e o cosmos.
O rio Jordão, o deserto e a Galiléia são como que um mesmo “fio condutor” de um deslocamento fundamental que dá início ao evangelho de Marcos. Aí percebemos o movimento do reino de Deus que convida a mobilizar-nos em busca de nossos próprios “lugares do Reino” onde se concretizam e se desenrolam nossas opções pela vida, pela dignificação das pessoas e das comunidades.
O rio Jordão evoca grandes e significativos feitos da historia de Israel. É mais importante, sem dúvida, quando Josué e o grupo do deserto atravessam o rio para entrar na terra prometida (Js 3-4). Relato das origens daquele projeto de vida igualitária revelado por Deus aos escravos fugitivos do Egito. A partir dessa memória primordial, João, o Batista, convoca o povo ao redor de uma nova esperança messiânica. Aí também chega Jesus, procurando “as águas de João”.
O deserto é a mediação muito freqüente de discernimento, formação e amadurecimento do projeto de Deus. Jesus é levado pelo Espírito ao deserto, lugar por excelência onde Israel aprendeu a ser povo. Sujeito e projeto unidos na memória do êxodo, dando inicio ao evangelho de Jesus.
Galiléia o lugar onde Jesus concretiza sua opção pela humanidade e pela humanização. Essa geografia é, para Jesus, o espaço vital do Reino. É um mar, uma terra e um povo aberto às nações do entorno. As fronteiras se “cruzam” dando lugar à inclusão do diferente em múltiplas “misturas”. Tudo isto favoreceu o amadurecimento e a irrupção do kairós do reino de Deus.
A passagem do Jordão em direção ao deserto, propõe a articulação de movimentos messiânicos proféticos que têm nesses lugares suas fontes de inspiração e de organização. Marcos vincula o confronto com Satanás, principio cósmico do mal, com a enfermidade, a marginalização e a morte dos pobres; será para Jesus a definição de sua vida pela rota do reino de Deus.
O deserto deixa de ser um lugar de prova e penitencia, segundo a tradição judaica, para converter-se em lugar de aprendizagem definitiva no confronto e na superação do desequilíbrio. O Espírito de Deus leva Jesus até a memória fundamental de Israel; vencendo a Satanás, a vida se transforma em fidelidade para com Deus e para com o ser humano. O simbolismo dos “quarenta” tem a ver com o trauma do novo nascimento. Os poderes da historia se confrontam: Jesus, como princípio da humanidade, libertada a partir de Deus, e Satanás, que é símbolo e causa de morte no mundo. Nós nos encontramos frente ao relato de uma nova origem.
Marcos reescreve a historia, levando-nos da água do batismo à reconstrução da humanidade, par nos dizer que Jesus está aí apostando numa nova opção de vida, dignidade e felicidade humana. Porém, Jesus não assume o combate solitário. Está juto como os animais e os anjos como que evocando um novo paraíso. O serviço evangélico comunica esperança e a realidade da salvação.
Ao retomar o “paraíso” para reiniciar o caminho do humano, Jesus conta com forças naturais e angelicais (terra e céu) favoráveis. Jesus se encontra entre a tentação satânica e o serviço angélico. É o dilema que permanentemente enfrentamos. Marcos evocou estes poderes como em um espelho para que possamos nos espelhar neles. Ele esclareceu o que é servir, conectando-nos à “historia original”. Já na historia concreta esses atores sobrenaturais desaparecem e é quando Jesus nos ensina a servir, servindo à sua comunidade discipular.
Obviamente, os quarenta dias de deserto não desaparecem. Duram todo o evangelho, toda a vida. São paradigma da contradição e do desequilíbrio, que permanentemente atravessam a historia. Na trama da vida humana nasceu e foi sendo introduzida e decidida a trama do pecado e a esperança de todos os viventes (incluindo animais, anjos e diabos). Definitivamente, a liturgia apresenta este evangelho do começo do ministério de Jesus em paralelo com o começo da quaresma. A quaresma é a vida humana...
Um chamado à conversão ecológica Urgente
A primeira leitura deste domingo introduz o tema ecológico na liturgia, concretamente no tema da conversão. Se a mensagem deste primeiro domingo da quaresma é centrado na conversão, este texto nos dá uma motivação bíblica para incluir a dimensão ecológica nessa conversão hoje necessária.
Embora nos custe admitir, é do conhecimento de todos que as três religiões monoteístas, a religiões do livro, tiveram e continuam tendo muito pouca sensibilidade ecológica. Mais ainda: a dimensão cultural da exploração sem misericórdia da natureza, vista como mero objeto, objeto de exploração, coisificada, objetivada como mero recurso à nossa disposição, não foi invenção humana alheia ao religioso, ao contrario se apóia literalmente nas palavras do Gênesis, (1, 26, no primeiro capítulo da Bíblia). E tudo isso pelo “antropocentrismo”, um erro de perspectiva do qual a Bíblia não nos libertou, mas nos confirmou, e pelo qual nos consideramos o centro da realidade do cosmos.
Um conceito novo, que especifica bem o sentido do “antropocentrismo” é o de “especismo”: concretamente, considera que nós somos a última espécie, somos os recém vindos ao mundo, nos convertemos em uma autêntica força geológica e nos consideramos os seus donos e protagonistas, postergando todas as demais espécies, considerando-as uma classe inferior, biologia e filosoficamente.
A “aliança com Noé” é um pacto com o qual, segundo a tradição recolhida do gênesis, Deus quer comprometer-se com toda a humanidade e todo ser vivo; promessa de que não haverá nenhum novo dilúvio que destrua o ser humano nem a vida sobre a face da terra. O arco-iris será sua lembrança para Deus, diz o Gênesis (9,13).
Hoje é necessário outro pacto ecológico, uma aliança de paz do ser humano com a natureza, para deixar de agredi-la e de destruí-la, para passar a uma atitude de cuidado e de responsabilidade. É preciso superar a postura tradicional de “concordismo bíblico”; pensamento segundo o qual tudo o que é bom que descobrimos ou amadurecemos... já estava previamente na Bíblia, ainda que tivéssemos passado vinte séculos sem percebê-lo.... A dimensão ecológica que hoje estamos descobrindo não está na bíblia.
Mais: na bíblia estão fundamentadas atitudes que hoje parecem ecologicamente irresponsáveis, ou anti-ecológicas. A Bíblia foi escrita em uma época sem perspectiva ecológica e é por isso que na liturgia e no ano litúrgico está tão ausente a ecologia. É necessário “forçar” adequadamente a situação para introduzir o tema, pela urgência do mesmo.
Neste momento, aumentar a consciência da responsabilidade ecológica da humanidade, sobretudo em vista da urgência de evitar o “ponto de retorno” que se aproxima perigosamente segundo todos os cálculos, é um dos deveres máximos do cristão e de todo simples ser humano consciente. Se a humanidade não toma urgentemente uma nova atitude, entra em crise sua própria sobrevivência.
E ainda que mudemos amanhã mesmo, os estragos causados no planeta já são irreversíveis, e vamos pagar caro por eles durante muito tempo. É importante que a conversão de que nos fala a quaresma inclua a conversão ecológica, além da conversão para um compromisso maior com a questão da saude.
Oração
Ó Deus Pai, ao começar esta Quaresma nós suplicamos tua ajuda: que nos empenhemos em uma autentica conversão de nossos corações e de nossa vida pessoal e comunitária. De nossa parte, nós nos esforçamos para transformar nossa família, nossa sociedade e o mundo. Nós te pedimos em nome de Jesus, teu Filho e irmão nosso. Amém
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